escultura

O ARTISTA

O início: o manguezal e o artesanato      

O artista plástico Irineu Ribeiro nasceu em Linhares, interior do Estado do Espírito Santo. Veio para Vitória com três anos de idade e em seguida a família se estabeleceu no município de Cariacica. Dessa época Irineu lembra do seu primeiro contato com o barro: “Foi o meu primeiro contato com o manguezal. Eu ia com as minhas tias para o mangue por que elas coletavam mariscos, sururus. Eu achava aquele universo todo muito gostoso... para uma criança aquilo era uma alegria! As brincadeiras com o barro. O barro formado pela chuva, que quando eu vi que tinha liga, que tinha plasticidade eu pegava aquilo e fazia um monte de coisas: fazia bichinhos para presépios, construía cidadezinhas...”.

            O contato com a arte se deu quando adulto. Aos 20 anos em busca de um emprego, Irineu decidiu trabalhar com artesanato. Utilizando como matéria-prima a massa epóxi, o artista modelava e pintava uma série de peças figurativas como aves, garças, tatus e símbolos esotéricos. Irineu vendia seus trabalhos nos finais de semana na feira da Praça dos Namorados e dessa sua experiência com o artesanato ele faz a seguinte reflexão: “Quando eu iniciei meu trabalho com a massa epóxi eu ressuscitei aqueles momentos da infância no manguezal, além disso, foi o momento em que eu comecei a despertar para a arte”.

            Toda essa vivência no manguezal refletiu diretamente em seu percurso artístico, mas a primeira exposição que ocorreu no Teatro Carmélia surgiu através de uma temática que é também marcante em sua produção artística: os negros. Em seguida, o artista recebeu convites para exposições ecológicas, entre elas a tradicional Feira do Verde: “E daí eu comecei a participar de várias exposições ecológicas falando do manguezal. Eu praticamente me especializei em manguezal. Então, eu comecei a colocar o aprendizado que adquiri em encontros de educadores ambientais dentro do meu contexto de produção artística. Fiz um trabalho com a temática dos caranguejos que já foi até para outros Estados como Santa Catarina e Bahia”.

A vida acadêmica

            Seu interesse por esta temática e o domínio do assunto proporcionado tanto pela experiência pessoal quanto pelos conhecimentos adquiridos nas feiras ecológicas, influenciaram até mesmo suas produções acadêmicas. Um bom exemplo disso é o seu trabalho de Graduação que tem como título A Estética do Manguezal.

            De sua experiência no curso de Artes Plásticas o artista lembra principalmente do confronto entre sua produção artística artesanal de massa epóxi e a produção artística daquela academia: “Muitas pessoas me estimularam a fazer Artes Plásticas na Ufes. Eu me empenhei, estudei sozinho e cheguei ao curso de artes. Mas, não era exatamente aquilo que eu pensava. Eu cheguei lá mostrando o meu trabalho com o epóxi, mas ele não foi muito bem aceito por alguns membros da comunidade artística. A professora Rosana Paste me deu muito apoio, viu o meu trabalho e disse que eu estava com a faca e o queijo nas mãos. Disse que eu poderia desenvolver isso, que ela iria me orientar para que eu colocasse o meu trabalho dentro do contexto da filosofia contemporânea da arte”.

            Da época da faculdade Irineu também recorda com saudade das disciplinas práticas de cerâmica que fez com as professoras Cristina Oliveira, Marlene Tejada e Regina Rodrigues. Nessas aulas o artista teve a oportunidade de ampliar seus conhecimentos da técnica da cerâmica, conhecendo assim vários tipos de argilas, desde as industriais, vindas de São Paulo, até a matéria-prima mais rústica que irá encantar Irineu: a argila das paneleiras. “A maioria das pessoas não se adaptam a essa argila por que ela é cheia de pedrinhas e grãos. Eu me encantei justamente por isso, eu tiro proveito da rusticidade dela. Essa característica veio a atender às necessidades do meu processo, o fato de ele ter esses grãos dá uma enorme capacidade de sustentação. Eu vi que aquele barro me dava possibilidades por ele ser infinitamente plástico”.

            Dos conhecimentos adquiridos durante os anos que freqüentou as aulas no Centro de Artes, Irineu entrou em contato com obras dos mais diversificados artistas e movimentos. Alguns são apontados como referências para o desenvolvimento de seu trabalho plástico: o escultor francês Auguste Rodin, o capixaba Elpídio Malaquias e a paneleira Manhana. Além é claro, dos professores já citados anteriormente.

As paneleiras

O contato começou em 1999 quando o artista freqüentava a comunidade de Goiabeiras para adquirir o barro das paneleiras. A partir de um trabalho acadêmico realizado para uma disciplina no curso de Artes Plásticas, Irineu observa com interesse o trabalho realizado por aquelas mulheres: “O universo das paneleiras carrega um dado antropológico muito importante, é uma identidade cultural nossa e genuína. A partir do momento que eu comecei a tomar consciência disso, me encantei e me envolvi com esse trabalho”. O envolvimento do artista com a tradição cultural capixaba foi determinante no processo de criação de Irineu que passou a utilizar a mesma matéria-prima das paneleiras e as tornou um dos temas recorrentes de suas produções artísticas. Além disso, o interesse por esse dado cultural determinou suas escolhas teóricas em seu curso de graduação: “Através de estudos da disciplina de antropologia, eu adquiri base para ter outro olhar, outra percepção, buscar outro tipo de leitura em relação àquele saber popular das paneleiras”.

A matéria-prima e a técnica

            Além do fator cultural, que desperta o seu interesse, a argila utilizada pelas paneleiras tem, segundo o artista, algumas características peculiares que justificam sua opção por essa matéria-prima: “Eu já até utilizei outros, mas o barro das paneleiras foi o que me deu mais suporte.  Primeiro pela facilidade de acesso ao local de extração e sobretudo porque, na sua composição, o barro do Vale do Mulembá tem fósseis marinhos que lhe conferem  uma determinada plasticidade. Além é claro da possibilidade de queima a céu aberto, técnica herdada das culturas indígenas”. Dessa forma, o artista insere seu trabalho artístico dentro do universo das paneleiras, utilizando a mesma matéria-prima e o mesmo processo que vai desde a extração no Vale do Mulembá feita por membros da comunidade de Goiabeiras e continua na técnica de preparação do barro terminando com a queima das peças.

            Esta é feita em uma fogueira de lenha construída de acordo com a direção do vento. As peças são forradas e cobertas por esta lenha. Quando as peças estão incandescentes elas são retiradas com uma ferramenta de madeira comprida. Depois disso, cada uma delas passa pelo processo de pintura peculiar das panelas de barro do Espírito Santo. As paneleiras batem nas peças com a mochenga, uma vassourinha feita de risófora (rizophora mangle), planta típica do mangue, esta é molhada no tanino, uma substância extraída da casca da árvore conhecida como mangue vermelho. Para a obtenção dessa substância utilizada na coloração e também na impermeabilização das peças, é preciso deixar as cascas de molho na água, em poucos dias elas soltam a tinta e pigmentam o líquido com uma tonalidade vinho escura, que em contato com a peça quente se modifica.

O Atelier: a casa de D. Janete

            O mergulho do artista no universo das paneleiras vai mais além. Ao contrário da maioria dos artistas plásticos que desenvolvem seus trabalhos na calma e na solidão de um atelier, Irineu fez o caminho inverso: buscou a interação, a troca, a imersão e a ampliação de seus conhecimentos trabalhando na casa de uma paneleira. “Eu fiz amizade com a D. Janete que permitiu que eu trabalhasse lá. Ela me acolheu no espaço dela, na casa onde ela vive e produz as panelas de barro. E lá eu tenho todas as possibilidades, eu faço minhas peças, queimo na fogueira, aliás não queimo, eles é que queimam para mim! O convívio no ambiente deles é muito bom, eu me identifico muito. Os mais velhos tem sempre histórias para contar, é isso que me faz ficar feliz naquele ambiente”.

            A casa se localiza em um amplo terreno localizado em Goiabeiras. Duas casas, uma de D. Janete e a outra de sua mãe, uma sorridente senhora de 95 anos que um dia também já foi paneleira. Todo o terreno externo da casa é utilizado na produção das panelas: em frente à casa e embaixo de uma árvore uma grande bancada utilizada na modelagem das peças. Ao fundo e na varanda da casa muitas peças estocadas prontas para a queima. E finalmente em um amplo quintal lateral, o espaço onde é depositada a lenha e são montadas as fogueiras. O chão deste local é negro como a cor das panelas, pois é neste local que D. Janete aplica a coloração com o tanino. O quintal guarda também um permanente cheiro das queimas anteriores.

A D. Janete

            Esta senhora de 66 anos de idade trabalha fazendo panelas de barro desde os 9 anos. Quem lhe ensinou o ofício foi a sua avó. Ela lembra que, quando estava aprendendo, sua avó quebrava as peças erradas e dizia que ela estava se distraindo com as brincadeiras das crianças na rua. “Ela dizia assim: você só sai daqui quando fizer uma panela direito. Até que eu consegui e estou fazendo até hoje”. Seus netos não têm mais interesse em aprender a fazer as famosas panelas, somente um filho, Lúcio é que trabalha profissionalmente com a produção das peças, inclusive diversificando os produtos. Além de panelas, Lúcio faz churrasqueiras e cofrinhos de barro, utilizando o mesmo processo tradicional. Ele, ao contrário de D. Janete, acha que as coisas estão mais fáceis para quem trabalha com panela de barro. “Antigamente o pessoal tinha quer ir de canoa pelo mangue lá para a Vila Rubin vender as panelas”. Ele acredita que as coisas melhoraram com a criação da Associação das Paneleiras que fazem um bom trabalho de divulgação, mas acredita também que depende muito do esforço individual: “Se tem um barzinho que vai inaugurar... eu já estou lá oferecendo as minhas panelas. Divulgo assim e tem dado certo”.

            Ao contrário do filho, D. Janete se diz cansada deste trabalho. Tão cansada que tem dias que faz 20 panelas e outros que não faz nenhuma, só descansa e vê televisão. Mas, de todos os aspectos que envolvem este ofício, D. Janete gosta mesmo é de viajar em eventos para divulgar seu trabalho e vender suas peças: “Já viajei com a banda de congo da Barra do Jucú. As pessoas de outros Estados ficam encantadas com as panelas e vendem que nem água. O chato é que tem que ficar repetindo toda hora como que faz as panelas! Mas, o Irineu já me falou que para vender tem que ser assim mesmo.” A paneleira não demonstra muita preocupação com a possibilidade desta tradição acabar um dia: “Acho que vai acabar mesmo, é muito trabalho e pouco valor que as pessoas dão.”

            Sobre o artista plástico Irineu Ribeiro, D. Janete conta, com aquela sinceridade típica das pessoas de bem, como eles se conheceram: “O Irineu trabalhava nesta casa aí em frente. Um dia veio me pedir barro. Achei aquilo tão estranho! Pensei assim: vou dar o barro para esse homem sumir daqui. Mas, depois ele foi se chegando de mansinho, com aquele jeitinho dele, conheceu meus filhos lá na universidade, levaram ele para ver o congo... aí pronto! Agora ele é amigo, como se fosse da família e quando ele não vem trabalhar eu sinto falta. Eu gosto dele porque ele é uma pessoa que só tem coisa boa pra oferecer, só tem coisa boa na cabeça”.

            Do contato entre o trabalho de Irineu e o ofício de D. Janete e seu filho Lúcio surgiram algumas trocas de idéias: “O Irineu me ensinou umas técnicas, eu aprendi o que fazer para evitar a trinca das panelas. Eu aprendi com ele e ele aprendeu com a gente também”. Mas, modelar o barro de forma realista e figurativa como trabalha Irineu, tanto D. Janete quanto o Lúcio concordam: requer muita paciência e gasta muito tempo.

            E assim, eles prosseguem em seu ofício, segundo D. Janete, “Com muita luta.” E também muita dedicação na busca em agradar seus compradores: os de fora que são muito exigentes no acabamento e os da terra que se sentem donos do barro, donos desta tradição capixaba e por isso querem comprar as peças quase de graça. É porque eles não conhecem a luta da D. Janete e das paneleiras de Goiabeiras Velha.    

A temática

            Participante ativo de movimentos que abordam a questão racial, a causa ecológica e o resgate da cultura popular, Irineu transporta para sua produção artística esses aspectos sociais representando-os através de suas esculturas de argila. Tendo sempre como base de suas criações o figurativismo, podemos destacar alguns temas recorrentes ao longo de sua produção artística: os elementos característicos do manguezal, a figura do negro e das paneleiras. E percorrendo por entre todos esses temas uma idéia central que conduz todo o seu trabalho: o resgate da cultura popular. “A identidade brasileira está nas manifestações culturais populares. É nelas que encontraremos a raiz, a essência”. Ao utilizar a mesma técnica artesanal das paneleiras, o artista coloca em relevância esse saber e chama a atenção do espectador para a importância da valorização da cultura popular capixaba.

            Foi em busca de retratar o real de forma mais convincente possível que Irineu se aproximou do saber popular das paneleiras: “Sempre tive uma atração pela figuração e uma gana de atingir o realismo. O que me move artisticamente é esse realismo. Sempre tive o interesse pela cor negra, quando eu olhei as panelas de barro e vi que a tonalidade era parecida com a pele negra, eu comecei a trabalhar com aquele processo na busca de atingir aquele realismo que eu tanto buscava”. Além de retratar as paneleiras, existe ainda no repertório do artista uma outra figura bem característica de sua temática: a nêga-pimenta. “Essa figura surgiu de uma reportagem que eu vi feita em Angola. A matéria mostrava uma comunidade onde as moças decoram a cabeça com pimenta”.

Veremos agora os aspectos que caracterizam seu mais recente trabalho, a exposição “O barro nosso de cada dia”.

 As referências do Artista

Elpídeo Malaquias

Elpídeo Malaquias nasceu em 1919, na cidade de Cariacica, Espírito Santo. Começou a desenhar ainda na infância, riscando com galhos finos a areia. Ele cresceu em uma fazenda e esse ambiente influenciou profundamente suas produções artísticas. Foi um grande admirador da natureza, os bichos e as flores estão sempre presentes em seus trabalhos. As figuras humanas apareceram em seu trabalho acompanhadas pela religiosidade. Imagens de santos católicos e a figura de Cristo acompanham as várias fases do artista. Era autoditada, “tudo o que eu faço é inventado. Eu nunca estudei. Tudo sai de dentro da minha memória... sou um inventor das minhas artes, das minhas obras”.

Como material utilizou tinta óleo brilhante e esmalte sintético, tendo como suporte o eucatex. Preferia cores saturadas, não se preocupava com volume, sua pintura era chapada. Para complementar seus trabalhos Malaquias utilizava a escrita. Seu contato com as palavras iniciou quando com dezoito anos aprendeu escrever seu nome, utilizando folhas de papel que catava na rua. Ele escrevia os títulos nas próprias obras, assinava “E.M.S - o enventor da arte”. 

  Segundo Bettina Gatti, a música e os instrumentos musicais também estão presentes em suas obras. “Malaquias compõe para contar um pouco de sua história”. Quando morava na roça fazia suas flautas com taquara, mas ao mudar-se para cidade passou a fazer seus instrumentos com canos de pvc. As flautas também eram suporte para sua pintura. Preferia homenagear os times de futebol brasileiros.


O pavão azul, 1999. Esmalte brilhante s/ eucatex, 44x88 cm. Coleção Elpídeo Malaquias.


Sua obra é marcada por uma regionalidade, pela cultura de um homem que se criou no campo e que em busca de uma vida melhor chegou à cidade para trabalhar nas mais diferentes profissões: foi pedreiro, vigia e artista.

 

Auguste Rodin

Rodin nasceu em 12 de novembro de 1840, em Paris. Desde pequeno apresentava uma desenvolvida percepção da dimensão do volume na escultura. Aos 14 anos iniciou seus estudos em uma escola de arte.

Foi recusado três vezes na Escola de Belas Artes em Paris e por isso foi trabalhar como modelador, escultor e decorador. Rapidamente sua fama como escultor foi ampliada e Rodin passou a ser convidado para fazer exposições em várias partes da Europa.

Seu estudo da escultura antiga o permitiu modelar formas contrastando com o reflexo da luz, produzindo efeitos antes inimagináveis. “Caminho pela antiguidade mais recuada. Pretendo ligar o passado ao presente, retomar a recordação, julgar e chegar a completar. Os homens são conduzidos por símbolos. É diferente de ser conduzido por mensagens”.

Suas obras mais famosas são “A Porta do Inferno”, inspirada no “Inferno” de Dante, e “O Pensador” que representa o próprio poeta. Dedicou quarenta anos para a criação da “Porta do Inferno”. Já “O Pensador” foi concebido para o cimo da Porta, de forma a personificar Dante, o poeta. Mas o artista desistiu de colocá-lo junto à porta e fez com que essa escultura, solitária e de grandes proporções, representasse o ser humano que traduz o esforço do seu pensamento através da contração dos músculos, tornando palpável o trabalho do espírito.


O Pensador, 1880. Bronze, alt. 0,70m. Museu Metropolitam, Nova Iorque.

Para ele uma escultura nunca estava acabada. Nos últimos dias de sua vida passou a brincar com suas esculturas, encaixando-as e juntando-as. Antes de falecer doou suas obras para o estado francês e preparou seu museu.

 

Irineu Ribeiro - (27) 3236 5714 / 9959 4810- irineu-ribeiro@bol.com.br

 

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