Por Vinicius
de Carvalho
Diante das crescentes dúvidas
sobre o respeito às metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO), o governo federal editou no final do mês de julho um
decreto que elevou as alíquotas de contribuições sobre a importação e a
comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP),
querosene de aviação e álcool (Decreto nº 9.101, de 20 de julho de 2017).
Do lado do governo, a expectativa
é que a elevação da carga tributária gere aumento da arrecadação: pretende-se
obter mais de R$ 10 bilhões com a medida. Do lado dos contribuintes, a
insatisfação tem sido grande devido ao aumento dos preços dos combustíveis
ocasionado pela elevação das alíquotas, como aconteceu com a gasolina, que teve
alta recorde nos postos, como informa reportagem do Valor do dia 1º de agosto.
Apesar do aumento de preços dos
combustíveis ter ganhado destaque nas últimas semanas, outra consequência da
elevação das alíquotas que tem sido pouco explorada por analistas e pelo debate
público é o fortalecimento dos incentivos para uma conduta perniciosa por parte
de agentes econômicos que pode ter efeitos ainda mais perversos: a sonegação ou
a inadimplência fiscal. O raciocínio é simples. Com cargas tributárias maiores,
o prêmio para a pessoa que desrespeita obrigações fiscais também aumenta.
Afinal, como o cálculo econômico racional demonstra, quanto maior o imposto a
ser pago, maiores os ganhos decorrentes da sonegação ou da inadimplência
fiscal.
Dois efeitos negativos da
sonegação ou da inadimplência fiscal para a sociedade são notáveis. O primeiro
deles, direto e facilmente perceptível, é a lesão aos cofres públicos, o que
afeta o provisionamento de serviços e o próprio funcionamento da máquina
pública. Este jornal (Valor Econômico)
chegou a reportar, por exemplo, nas edições dos dias 15 e 16 de novembro de
2016, que a atuação de agentes econômicos que sistematicamente sonegam impostos
ou não os pagam, somente no setor de combustíveis, geraria uma lesão aos cofres
públicos dos Estados brasileiros de mais de R$ 2 bilhões por ano. Com o aumento
das alíquotas das contribuições na importação e comercialização dos
combustíveis, esse dano pode se tornar ainda maior.
Um segundo efeito negativo da
sonegação ou inadimplência fiscal para a sociedade, mais indireto, mas nem por
isso menos problemático, são seus impactos para o funcionamento de uma economia
de livre mercado. A competição pressupõe que os agentes econômicos partam das
mesmas condições, pelo menos em relação ao modo como o Estado os trata, para
poderem concorrer. Na esfera tributária, essa premissa foi reconhecida como tão
fundamental no país que a Constituição Federal consagrou a neutralidade
tributária como princípio constitucional, no artigo 146A, a partir da aprovação
da Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003.
Em mercados nos quais os tributos
são parte significativa do custo do produto final, uma empresa que sonega tem
vantagens não desprezíveis diante de seus competidores. Para ilustrar essa
situação, basta comparar o preço de um produto pirateado com o preço de um
produto legal com nota fiscal.
Além de afetar os preços
praticados, distorcendo o comportamento do consumidor em relação a um mercado
absolutamente legal, a conduta empresarial de sonegação ou inadimplência fiscal
sistemática que visa a prejudicar a livre concorrência pode ter outros efeitos
perversos. A conduta pode afastar a entrada de novos competidores, que adiam
seu ingresso naquele segmento ou simplesmente desistem de competir legalmente
com os infratores. Também pode inibir investimentos de outros concorrentes que
já estão no mercado e respeitam as leis, mas que não enxergam possibilidade de
crescimento em um contexto de competição desleal, ou pode até mesmo consolidar
a posição de mercado de uma empresa que sistematicamente sonega ou não paga
seus tributos.
Se os impactos da sonegação ou
inadimplência fiscal na concorrência são evidentes em um contexto de
normalidade tributária, quando ocorre a elevação das alíquotas de tributos,
como aconteceu no país no final de mês de julho, torna-se mandatório que as
autoridades públicas fiscalizem as condutas dos agentes econômicos para evitar
que eles se beneficiem concorrencialmente.
A boa notícia é que algumas
autoridades públicas parecem estar atentas a esse fenômeno. Um avanço recente
foi a conclusão do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso
Extraordinário nº 550.769, em 2013, em que a cassação do registro especial de
funcionamento de uma empresa do setor tabagista pelo órgão fazendário foi
declarada constitucional porque o descumprimento contínuo e injustificado de
obrigações tributárias por parte da empresa concedia a ela vantagens
concorrenciais significativas. Um dos fatores da análise do Supremo foi a
relevância dos tributos para a concorrência no setor tabagista. A atuação
conjunta das Fazendas Públicas, das polícias e do Judiciário pode tornar a
prática da sonegação ou inadimplência fiscal mais arriscada para o infrator, diminuindo
os incentivos para sua adoção.
Dada a gravidade dos efeitos
tributários para a livre concorrência, em especial nos setores com tributação
específica, como nos mercados de tabaco, de bebidas e de combustíveis, cabe até
mesmo o questionamento a respeito da possibilidade de atuação do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em um caso no qual práticas
tributárias, como sonegação fiscal sistemática em setor com elevada tributação,
possam efetivamente ter contribuído para que uma empresa tenha obtido vantagens
em relação a outras, o órgão antitruste poderia avaliar se a conduta configurou
infração à ordem econômica, nos termos da Lei 12.529, de 30 de novembro de
2011.
No Brasil, o Cade nunca analisou
casos concretos de práticas tributárias que possam afetar a concorrência. Isso
não significa que o órgão não tenha oportunidade de se manifestar no futuro.
Caso as autoridades públicas não atuem conjuntamente para investigar e punir
ilícitos, em todas as esferas, o crime com certeza compensa.
Vinicius
Marques de Carvalho é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo (USP) e advogado. Foi presidente do Cade entre 2012 e 2016.
Fonte: Valor Econômico,
16/08/2017, p. A10.