Fique por Dentro

 

Notícias e Eventos

17/08/2017

Quando o crime compensa?

Por Vinicius de Carvalho

 

Diante das crescentes dúvidas sobre o respeito às metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o governo federal editou no final do mês de julho um decreto que elevou as alíquotas de contribuições sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene de aviação e álcool (Decreto nº 9.101, de 20 de julho de 2017).

 

Do lado do governo, a expectativa é que a elevação da carga tributária gere aumento da arrecadação: pretende-se obter mais de R$ 10 bilhões com a medida. Do lado dos contribuintes, a insatisfação tem sido grande devido ao aumento dos preços dos combustíveis ocasionado pela elevação das alíquotas, como aconteceu com a gasolina, que teve alta recorde nos postos, como informa reportagem do Valor do dia 1º de agosto.

 

Apesar do aumento de preços dos combustíveis ter ganhado destaque nas últimas semanas, outra consequência da elevação das alíquotas que tem sido pouco explorada por analistas e pelo debate público é o fortalecimento dos incentivos para uma conduta perniciosa por parte de agentes econômicos que pode ter efeitos ainda mais perversos: a sonegação ou a inadimplência fiscal. O raciocínio é simples. Com cargas tributárias maiores, o prêmio para a pessoa que desrespeita obrigações fiscais também aumenta. Afinal, como o cálculo econômico racional demonstra, quanto maior o imposto a ser pago, maiores os ganhos decorrentes da sonegação ou da inadimplência fiscal.

 

Dois efeitos negativos da sonegação ou da inadimplência fiscal para a sociedade são notáveis. O primeiro deles, direto e facilmente perceptível, é a lesão aos cofres públicos, o que afeta o provisionamento de serviços e o próprio funcionamento da máquina pública. Este jornal (Valor Econômico) chegou a reportar, por exemplo, nas edições dos dias 15 e 16 de novembro de 2016, que a atuação de agentes econômicos que sistematicamente sonegam impostos ou não os pagam, somente no setor de combustíveis, geraria uma lesão aos cofres públicos dos Estados brasileiros de mais de R$ 2 bilhões por ano. Com o aumento das alíquotas das contribuições na importação e comercialização dos combustíveis, esse dano pode se tornar ainda maior.

 

Um segundo efeito negativo da sonegação ou inadimplência fiscal para a sociedade, mais indireto, mas nem por isso menos problemático, são seus impactos para o funcionamento de uma economia de livre mercado. A competição pressupõe que os agentes econômicos partam das mesmas condições, pelo menos em relação ao modo como o Estado os trata, para poderem concorrer. Na esfera tributária, essa premissa foi reconhecida como tão fundamental no país que a Constituição Federal consagrou a neutralidade tributária como princípio constitucional, no artigo 146A, a partir da aprovação da Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003.

 

Em mercados nos quais os tributos são parte significativa do custo do produto final, uma empresa que sonega tem vantagens não desprezíveis diante de seus competidores. Para ilustrar essa situação, basta comparar o preço de um produto pirateado com o preço de um produto legal com nota fiscal.

 

Além de afetar os preços praticados, distorcendo o comportamento do consumidor em relação a um mercado absolutamente legal, a conduta empresarial de sonegação ou inadimplência fiscal sistemática que visa a prejudicar a livre concorrência pode ter outros efeitos perversos. A conduta pode afastar a entrada de novos competidores, que adiam seu ingresso naquele segmento ou simplesmente desistem de competir legalmente com os infratores. Também pode inibir investimentos de outros concorrentes que já estão no mercado e respeitam as leis, mas que não enxergam possibilidade de crescimento em um contexto de competição desleal, ou pode até mesmo consolidar a posição de mercado de uma empresa que sistematicamente sonega ou não paga seus tributos.

 

Se os impactos da sonegação ou inadimplência fiscal na concorrência são evidentes em um contexto de normalidade tributária, quando ocorre a elevação das alíquotas de tributos, como aconteceu no país no final de mês de julho, torna-se mandatório que as autoridades públicas fiscalizem as condutas dos agentes econômicos para evitar que eles se beneficiem concorrencialmente.

 

A boa notícia é que algumas autoridades públicas parecem estar atentas a esse fenômeno. Um avanço recente foi a conclusão do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário nº 550.769, em 2013, em que a cassação do registro especial de funcionamento de uma empresa do setor tabagista pelo órgão fazendário foi declarada constitucional porque o descumprimento contínuo e injustificado de obrigações tributárias por parte da empresa concedia a ela vantagens concorrenciais significativas. Um dos fatores da análise do Supremo foi a relevância dos tributos para a concorrência no setor tabagista. A atuação conjunta das Fazendas Públicas, das polícias e do Judiciário pode tornar a prática da sonegação ou inadimplência fiscal mais arriscada para o infrator, diminuindo os incentivos para sua adoção.

 

Dada a gravidade dos efeitos tributários para a livre concorrência, em especial nos setores com tributação específica, como nos mercados de tabaco, de bebidas e de combustíveis, cabe até mesmo o questionamento a respeito da possibilidade de atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em um caso no qual práticas tributárias, como sonegação fiscal sistemática em setor com elevada tributação, possam efetivamente ter contribuído para que uma empresa tenha obtido vantagens em relação a outras, o órgão antitruste poderia avaliar se a conduta configurou infração à ordem econômica, nos termos da Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011.

 

No Brasil, o Cade nunca analisou casos concretos de práticas tributárias que possam afetar a concorrência. Isso não significa que o órgão não tenha oportunidade de se manifestar no futuro. Caso as autoridades públicas não atuem conjuntamente para investigar e punir ilícitos, em todas as esferas, o crime com certeza compensa.

 

Vinicius Marques de Carvalho é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e advogado. Foi presidente do Cade entre 2012 e 2016.

 

Fonte: Valor Econômico, 16/08/2017, p. A10.